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Curta-metragem: Inércia

FADE IN:

1 INT. QUARTO – DIA 1

Bernardo está sentado, com as pernas encolhidas, falando ao telefone.

BERNARDO

(sussurrando)

Ela tem andado muito violenta. Tenho medo do que pode fazer com os meus filhos.

AMIGO (V.O.)

Mas é assim mesmo. Mulher tem gênio forte, né?

BERNARDO

Não é só por causa do gênio dela. Ela nos trata mal. Todos nós.

AMIGO (V.O.)

Ela trabalha muito, você sabe disso. Seja paciente. As coisas vão ficar melhores.

BERNARDO

E se não melhorarem?

AMIGO (V.O.)

A gente tem que aprender a lidar, né? Às vezes Ângela se estressa, mas eu já sabia que ela era assim quando me casei e você também sabia da Regina. Homem já nasce com essa habilidade de contornar a situação. Você não vai querer ser desses homens moderninhos que saem de casa, vai?

BERNARDO

Claro que não. Nem pensei nisso.

AMIGO (V.O.)

Você sabe o que a Bíblia diz a respeito disso, não sabe?

BERNARDO

Sei.

AMIGO (V.O.)

E sabe que as crianças não podem ficar sem a mãe, né? Já pensou? Ninguém quer ser amigo de filhos de pais divorciados não. Pai solteiro é um absurdo nessa sociedade de hoje. Você não vai querer isso pros seus filhos.

Bernardo olha para um porta retrato com a foto dos filhos, enquanto o amigo fala. Uma profunda angústia o abate.

2 INT. QUARTO – MANHÃ 2

O despertador toca e Bernardo tateia até desligá-lo. REGINA se mexe e vira para o outro lado. Bernardo levanta e caminha até o banheiro, parando para fazer carinho na cadela deitada no chão. Ele escova os dentes e sai do quarto, andando na ponta dos pés, observando a esposa constantemente.

Bernardo caminha até a cozinha, pega no armário duas lancheiras infantis, coloca uma maçã e um suco dentro de cada uma e as fecha.

3 EXT. RUA – DIA 3

BERNARDO caminha pela rua segurando algumas sacolas: uma com tomates, outra com frutas e uma com remédios. Alguns GRITOS e TAPAS são ouvidos, de forma não diegética, dando a entender que são uma memória de Bernardo.

BERNARDO (V.O.)

(Gritando)

Pare, por favor. Pare, eu não aguento mais.

REGINA (V.O.)

É pra você aprender qual é o seu lugar.

BERNARDO (V.O.)

(Chorando)

Por favor. Por favor. Por favor. Por favor.

REGINA (V.O.)

Eu tenho sido tão paciente com você. Eu sou paciente, não sou?

BERNARDO (V.O.)

Por favor. Por favor.

REGINA (V.O.)

Eu fiz uma pergunta. Me responda.

Bernardo fica em silêncio por alguns instantes e se ouve um tapa mais alto, acompanhado de uma queda.

REGINA (V.O.)

Eu estou mandando você me responder.

BERNARDO (V.O.)

Você é. Você é muito paciente.

REGINA (V.O.)

Então por que você nunca aprende a me respeitar?

BERNARDO (V.O.)

(Sussurrando)

Desculpa.

REGINA (V.O.)

Fale mais alto, seu bosta.

BERNARDO (V.O.)

(Gritando)

Desculpa!

Ouve-se um tapa e um grito e Bernardo estremece, deixando um tomate cair e estourar no chão.

4 INT. CASA – DIA 4

A porta da casa se abre. REGINA entra, senta no sofá e joga a bolsa e as chaves ao seu lado. Pega o celular do bolso e começa a digitar.

REGINA

(Gritando)

Bernardo?

BERNARDO

(Entra em cena)

Você chegou cedo.

REGINA

Essa é a sua desculpa para a casa estar imunda?

BERNARDO

Eu ia limpar tudo agora. É que não tive tempo.

REGINA

Não teve tempo? Não teve tempo pra quê? Pra fazer a sua única obrigação? É a única coisa que eu peço para que você faça. Trabalho o dia inteiro e o mínimo que espero é chegar e encontrar a casa limpa.

BERNARDO

(Balbuciando)

Fui comprar algumas coisas que faltavam.

REGINA

Foi gastar o meu dinheiro, você quer dizer, né?

BERNARDO

Paulo adoeceu e precisava de remédios.

REGINA

Essas crianças vivem doentes. Nem cuidar delas você sabe. Além de carregar esses dois por nove meses na minha barriga, vou ter que ficar monitorando agora que já estão crescidas também? Será que eu tenho sempre que fazer tudo nessa casa?

Regina se levanta e joga o celular no sofá.


5 EXT. RUA – DIA 5

Bernardo caminha pela rua. DUAS MULHERES o observam.

MULHER 1

(Assobia)

Que perigo um cara bonito assim sozinho...

BERNARDO

(Anda mais rápido)

MULHER 2

(Ri)

Aonde vai com tanta pressa, lindo?

MULHER 1

Dá um sorrisinho pra mim, dá. Para de ser tão mal-humorado.

BERNARDO

(Mostra o dedo do meio)

MULHER 2

Tá estressadinho? Vem cá que eu te acalmo.

(Manda beijo no ar)

As mulheres riem. Bernardo cruza a esquina.

6 INT. QUARTO - NOITE 6

Bernardo está deitado na cama virado de lado, Regina entra no quarto e se deita ao lado dele, passando a mão por seu braço.

REGINA

(Sussurrando)

Já está dormindo?

BERNARDO

(Permanece em silêncio, com olhos fechados)

Regina começa a beijar seu braço e a acariciá-lo. Ela o vira de frente, mas ele mantém os olhos fechados. Enquanto isso, ela desce até a parte inferior de seu corpo e ele franze o rosto, mostrando incômodo. Bernardo olha para cima e vê um crucifixo sobre a cama. Contempla-o.

7 EXT. LUGAR ALTO – FIM DA TARDE 7

Bernardo está olhando para frente com uma expressão abatida. Lentamente, abre os braços e faz um movimento para frente que indica que vai se jogar.

8 INT. CASA - NOITE 8

Regina senta à mesa e começa a se servir. Depois de uma garfada, cospe a comida no rosto de Bernardo, que se limpa rapidamente.

REGINA

(Gritando)

Eu pareço uma porca?

BERNARDO

O quê?

REGINA

Uma porca. Eu pareço com uma?

BERNARDO

Não, claro que não.

REGINA

Então por que você acha que eu vou querer comer essa lavagem que você fez?

Bernardo fica em silêncio.

REGINA

Às vezes parece uma piada. Uma grande piada. Isso é engraçado para você? É esse o objetivo?

BERNARDO

Eu...

REGINA

(Gritando)

Cala a boca. Cala a boca e só fala quando eu disser que você tem minha autorização para falar.

Regina empurra Bernardo, que cai no chão.


REGINA

Não basta eu trabalhar para colocar comida nessa casa. Para pagar essas suas coisas imbecis e fúteis de homenzinho. Para sustentar os seus filhos. Eu ainda tenho que comer essa bosta que você cozinha? Será que eu vou ter que contratar um empregado agora porque você é um inútil que não consegue fazer o que eu mando?

Você quer que eu saia dessa casa? Quer que eu vá embora? Porque se você pensa que é o único homem do mundo você está enganado. Há milhares de homens loucos para ter uma esposa como eu, uma vida como a sua.

Regina começa a andar pelo cômodo impacientemente, enquanto Bernardo continua a olhá-la nervoso.

REGINA

(Gritando)

É isso que eu devia fazer. Devia ir embora e ver se um idiota como você consegue viver sem mim. Você ia voltar rastejando para mim, não dou nem dois dias. Você quer que eu vá?

Bernardo permanece em silêncio.

REGINA

(Gritando)

Me responda!

BERNARDO

(sussurrando)

Não. Eu não quero.

REGINA

Então implora. Implora para eu ficar e não te deixar com essa vida miserável.

BERNARDO

Fique, por favor. Fique.

REGINA

Me fala que você não ia conseguir viver sem mim.

BERNARDO

Eu não iria sobreviver sem você.

REGINA

Você é patético.

Regina sai da sala e Bernardo joga o prato na parede.

FADE OUT

FIM